O Menino e o Materialismo

08/08/2022

O alvoroço de entrada aos estudos já tinha acabado. O menino chegara atrasado outra vez. Mesmo andando todo dia santo por aquele mesmo caminho, cada nascer de sol se mostrava um novo percurso.

Noutro dia, parou as andanças estupefato: Nossa! Aquela árvore está despelada, nadinha de pelo, lisinha, pensou o menino indo atrás de suas curiosisses. Vidrou na árvore, contou as folhas que tapetavam o chão e, mais um dia de atrasos se iniciava.

Naquela específica manhã, o menino descobriu um ninho de joão-de-barro. Bem no alto do abacateiro. Semelhava uma construção, pensava em si mesmo. Incrivelmente certinho, um redondo que nem bola com buraquinho no meio. Parecia que teve mãos de anjo ajudando no casulo. Como esse pássaro com cara de bobo conseguira fazer uma casa dessas? Coisa de anjo, encafifou o moleque. Lembrou os cochichos de sua tia velha em seu ouvido, como um segredo bem guardado em caixa de sete chaves: quando temos um trabalho difícil a fazer, os anjos se aprumam para nos ajudar.  Mas será que os anjos também ouviam os pássaros?; entreteve-se em divagações.

Ao chegar na porta da escola apenas o sorriso da servente o esperava. “Atrasado de novo, menino! Parou para contar as formigas no caminho?”, perguntou a senhora com o balde e vassoura nas mãos. O menino sorriu tímido e, lembrado dos compromissos, correu para a classe que o aguardava.

A porta, mesmo fechada, deixava escapar o vozeirão da professora de história, que falava tão alto como se estivesse ao microfone. A tentativa foi de abri-la vagarosa e silenciosamente para que não o vissem entrar, esperançava o garoto.

Esperança em vão, já no primeiro passo a professora calou-se abruptamente e lançou um olhar em chamas para o atrasado. Foram longos os segundos de silêncio até que o menino se sentasse em sua habitual cadeira escolar. Ao entorno, enquanto os colegas engoliam os risinhos interiores, o silêncio preenchia a tudo e a todos sem deixar espaço para qualquer suspiro. A professora alimentou o fogaréu que continuava a sair pelos olhos, estremecendo as pequenas almas. “Materialismo!”, ela disse em alto e bom som. “Esse é o tema de nossa aula de hoje. Imagino que já saiba tudo sobre o assunto, já que chegaste no final da aula?! Explique para nós, menino descompromissado das obrigações, diga o que tem dentro desta sua cabeça oca!”.

O desconforto abraçou o fedelho e a cadeira parecia estar pequena demais para o seu bumbum. A vermelhidão no rosto exibia o turbilhão que se passava dentro da criatura. Se é possível misturar embaraço e arrojo, assim se fez. Mirou as vistas fumegantes da professora com seus costumazes olhos de ternura, deixou escapar um sorriso suave, pediu desculpas pela intempere e confessou não saber do que se tratava a tal arguição.  

A professora, amansada pela ocasião, respirou fundo e abrandou seus fogos interiores. Passou-lhe um sermão e lhe deu um encargo para a próxima semana. Haveria de dar uma aula sobre o assunto, teria que explicar o aludido materialismo.

A volta para casa foi ligeira como nunca. As nuvens estavam abraçadas e pesadas. Havia uma escuridão que apontava aguaceiro dos grandes. Mesmo com o açodamento não costumeiro, a chuva lhe alcançou a poucos metros de sua casa. Ensopado nas lágrimas dos deuses, o menino reduziu o passo e deleitou-se com o encharcamento. Deitou a cabeça para traz e embebeceu-se das águas que desmoronavam em seu rosto. Sorriu fartamente e deleitou-se daquele presente acriançado.

Às voltas com a proteção da cria, sua mãe o recebeu cheia de toalhas de secamento. “Cuidado para não se resfriar, menino. Vai tomar um banho quentinho, vá urgente, vá”, endereçou Dona Francisca. Aquele menino era especial, pressentia com entendimentos que só os corações femininos conseguem aperceber. Diziam nas esquinas que o menino não tinha crescido, havia feito quatorze anos, mas continuava com dez. Cabeça de dez, falavam por aí. Mas ela sabia que o menino tinha ouvidos e olhos apurados. Ele vê com a alma, refletia. Exala uma sensível bondade porque ainda não foi adulterado pela realidade; suspirava ela, em si e para si mesma.

Naquela semana, o menino que voava em elucubrações, assentou os dois pés no chão. Agarrou a tarefa que havia sido intimada e sua mente, sempre pululante em abelhudisses, aquietou-se como o sol poente.

O menino navegou em páginas computadorizadas e livros de papel. Conversou com professores e investigou alguns amigos da escola, mas foi em sua tia velha que o ressoo se fez maior.

Os estudos nos escrevedores da história e nos cientistas revelaram dois entendimentos para o tal do materialismo. Inferiu, em sua primeira compreensão, um modo de vida superficial e sem preocupação com a existência, voltado principalmente para os bens materiais e prazeres da vida. Em sua segunda e mais filosófica concepção, uma forma de considerar o concreto e material como principal meio de explicação dos acontecidos, sem considerar o espírito, a mente ou o coração. Suas divagações revelaram que o materialismo não escolhia endereço, estava impregnado ao nosso redor, nas famílias, nas cidades, nas culturas, nas empresas, nos idealismos. Em uma das conversas com os colegas, lhe admirou perceber a dominância do materialismo até sobre inimigos mortais, o comunismo e o capitalismo.  

Mas foram nas conversas de sussurro de sua tia velha onde o tremular interno do menino se fez intenso. “Querido, sei do seu costume de observar as rochas no alto do morro. Algumas tem até nome, não é?”. O menino sorriu de canto de boca e acenou para anciã. “Imagine uma delas, me diga quais características ela tem?”. O menino, fã das imaginações, lembrou de uma grande rocha que ficava entre algumas jaqueiras no alto daquela colina. Sisuda, esse é o nome da rocha. Ela olha para mim como se estivesse zangada; ria o menino contando para sua tia velha. A Sisuda é dura e bem compacta, meio solitária ali no meio das jaqueiras, é como se não quisesse conversa com ninguém; arrematava a resposta. “Pois é, menino. A rocha é densa, difícil de penetrar. Ela fica ali imóvel, interagindo tão pouco que somente a erosão é capaz de mudá-la depois centenas ou milhares de anos. É uma das criações mais materiais da natureza, matéria condensada. Agora, como seria a Sisuda se a transformássemos em uma pessoa? Quais características essa pessoa teria?

O menino coçava-se como se formiguinhas entrassem em seus bolsos. O olhar para cima indicava o fervilhar de pensamentos. Deleitava-se com as provocações da tia velha. Seria uma pessoa dura e desaprovadora dos outros, ruim de entendimento, mas boa de mandamento; concluiu. “Menino certeiro. O materialismo toma conta quando não nos deixamos penetrar, somos julgadores, não interagimos e deixamos de aprender com o outro. Nossa cabeça e coração viram matéria condensada, nada penetra em nossas ideias formatadas. O materialismo segrega, afasta. Eu estou certo e você está errado! Agora perceba o vento, que carece de matéria. Interage nos campos ajudando a polinizar, nos mares formando suas ondas e, até, nas cidades poluídas, ajudando a melhorar o ar”; acrescentou a tia. “Ou a água de um riacho que desvia dos impedimentos para encontrar seu rumo e se doa aos peixes como morada de movimento. Quando nos permitimos interagir e ouvir sem julgar, carregamos algo de cada pessoa que passa por nós, por mais diferente que ela seja. Nossa cabeça fica fluída, leve, aprendemos com as pessoas, animais, plantas e com as estrelas”; findou a tia, encerrando a prosa.

O sol já havia nascido e o menino lá estava, pronto para empreender seu caminho. Lancheira na mão, beijo de mãe e uma mochila leve, sem muitos apetrechos, o acompanhavam em sua trilha para a escola, que o esperava para a apresentação da dita incumbência. Naquela manhã não houve atrasos, o cumprimento das obrigações foi exímio e a professora ouviu o menino narrar os entendimentos, percorrendo os estudiosos e alcançando as conversas sobre ventos e rochas. A professora nada falou, ouviu com esmero e agradeceu o empenho do rapazote.

Na aula seguinte, que sucedeu três dias após a dita apresentação, o menino, arrebatado pela curiosidade dos acontecidos da primavera, demorou-se novamente pelos caminhos. Atrasado, ouviu a voz vigorosa da educadora atravessar as portas da sala de aula. Abriu lentamente e pé ante pé foi até sua costumeira cadeira. A professora virou-se abruptamente e, olhando o menino, o surpreendeu: Fale rapaz! Conte-nos o que lhe atrasou pelo caminho. Compartilhe conosco o que aprendeu de novo na investigação desta manhã……     

Rodrigo Goecks Santos

@rodrigogoecks